domingo, 23 de junho de 2019

Exú bebe água?


É bom lembrar que um Exu, uma pombo gira, um caboclo ou um preto velho podem beber água quando incorporados no médium, ou a água de coco. Ficar cerca de 4 horas incorporados sem se hidratar é prejudicial a saúde do médium.
Muitos acham que Exu não bebe água. Sim Exu bebe água! 

Água é elemento de trabalho. Na tronqueira de Exu também tem água. Água é fonte de vida. O médium não morre durante o processo de incorporação. Incorporação não é possessão.

O Uso do fumo e do álcool não são obrigatórios durante o processo de incorporação. Não há necessidade de um "exu" consumir 10 charutos. Assim como não há necessidade de uma "pombo gira" fumar 3 maços de cigarros e tomar 3 garrafas de cachaça. Como não há necessidade de um "preto velho" utilizar 1 garrafa de vinho. Tudo é equilíbrio. Todo excesso esconde uma falta. Seja de disciplina ou conhecimento.

O fumo é utilizado para o descarrego não por vício da entidade. Vale lembrar que ao invés de utilizar o cigarro comum que as pombo gira usam é recomendando utilizar cigarrilhas ou mini charutos. Pois eles são menos agressivos e não contém o excesso de substâncias químicas que o cigarro comum têm. O charuto quando feito de ervas específicas se torna menos agressivo que o tradicional. Importante falar que a entidade, não traga charuto, ou cigarro. Elas puxam e soltam a fumaça. É bom orientar que é totalmente errado a "entidade" jogar fumaça no rosto do consulente.

Também não é ético a "entidade" servir bebida alcoólica a assistência. O álcool é elemento de trabalho. Sobre o elemento álcool, existem entidades que apenas passam cachaça na mão do médium para descarregar, sem ao menos beber um gole do seu marafo. Assim também existem entidades que manipulam água junto com aguardente, tornando um elemento forte de trabalho.

Existem médiuns que não utilizam o fumo ou bebidas alcoólicas por escolha própria que é um direito ou por algum problema de saúde e durante a gira as entidades trabalham da mesma maneira respeitando sempre o seu médium. Pois incorporação é uma troca, uma parceria entre médium e guia.

A entidade trabalha com ou sem fumo ou alguma bebida. Quem sabe trabalhar espiritualmente, a entidade descarrega com um copo de água, com uma vela, com uma erva ou apenas com um passe magnético. Entidades não carregam vícios. Não caiam nessa ah meu malandro só vem se tiver a Brahma dele hum..... Será mesmo o malandro? Meu tranca Ruas só vem se tiver o Whisky dele.... Hum será mesmo o tranca Ruas?

Vamos buscar, aprender. Nossa religião caminha evoluindo, mas alguns médiuns insistem em regredir. Nunca um espírito de luz irá prejudicar seu médium por que ele não tem um charuto ou uma bebida ou por escolher não utilizar esses elementos em conjunto com sua entidade de trabalho. 

Exú ou pombo gira, respeitam o médium e suas limitações, assim como o médium deve respeitar suas entidades. A incorporação é uma parceria entre médium e guia. Havendo sempre uma sintonia de lealdade é respeito.

Desvendando Logun Edé.


Muita coisa estranha ou inconclusiva é dita sobre Logun Edé, e ainda assim há pouca informação, seja séria ou não, sobre essa divindade. Esse texto tem o intuito de reunir algumas informações diferentes das que comumente circulam sobre esse Orixá.

Esta foto tirada por Verger mostra uma sacerdotisa de Logun que porta na mão direita uma espada cerimonial de bronze utilizada no século 19 por mulheres em suas danças. Na mão esquerda está o ofá/arco e flecha. Enquanto a relação entre Logun e Oxum é bastante clara (como será exposto adiante), a ligação com Erinlé, ou Ibualama, não parece tão justificável assim. Embora seja comum a afirmativa que seu pai seja Erinlé, um Oriki de Oxum afirma outra coisa:
"Orunto olufe li o bi Logun Ede. (Orunto Olufe gerou Logun Ede; tradução de Verger em Notas sobre o culto aos orixás e voduns, pág. 414).

A ligação literal com Erinlé que eu consegui encontrar foi num oriki Logun colhido por Verger na cidade de Ilexá, no qual consta um epíteto em comum com o de Erinlé, colhido em Ilobu pelo mesmo:

  • Para Logun: Ala opa fari (Ele mexe os braços fantasiosamente)
  • Para Erinle: Apa fari (Ele movimenta os braços com imaginação)
Quem é/foi Orunto Olufe que figura nessa cantiga de Oxum exposta por Verger?
Orunto Olufe, provavelmente o mesmo que OBALUFE ORUNTO. Segundo Bascom "Orunto também é conhecido como rei da cidade de Ife, Obalufe, Oba Ilu Ife" Neste sentido Orunto é considerado um governante de Ife pré-Odudua. (trecho de ‘African notes: Volume 8’, University of Ibadan. Institute of African Studies - 1979).

Ainda de acordo com Bascom, “(Orunto...) também conhecido como "Oni do exterior, de fora" (Oni ode) porque ele governa fora do palácio. Em Ifé havia chefes externos que eram responsáveis por cada distrito da cidade, Orunto em específico era primariamente responsável pelo distrito de Iremo, mas como nos tempos antigos o Oni só saía em público duas vezes ao ano durante festividades de Orisanla e Ogun, cabia a Orunto a responsabilidade pela cidade inteira no lugar do Oni (por isso era chamado de Obalufe, isto é Rei de Ife).

O porque do chefe desse distrito em particular (Iremo) ser escolhido para essa função justifica o porque Logun ser considerado um príncipe. A afirmação de que essa escolha aponta para uma linhagem anterior a Odudua que teria sido mantida dessa forma parece bem plausível já que o único contato pessoal entre o Oni e o Obalufe, que só ocorre uma vez por ano durante o festival de Edi, acontece na forma de uma batalha simulada.

Em Ijebu-Ife (local tido como a origem do Orunto, conhecido localmente como Balufo Ijaogun) ocorre uma cerimônia na qual os sacerdotes-chefe de Obalufe Orunto são identificados como pessoas que teriam possuído a terra anteriormente à ordem vigente e são eles, não o Oni ou algum sacerdote da linhagem de Odudua, que fazem as oferendas para apaziguar os deuses do solo. John Wyndham afirma em seu 'Myths of Ife', que o Obalufe clama ser descendente de Oxum.

A ligação entre Logun e Oxum é reforçada desde que é possível observar sua presença em mais Oriki de Oxum. Trechos de Oriki a Oxum (Verger, Notas sobre o culto aos orixás e voduns, pag. 415):

Yeye Ologun ede obinrin Pepe bi eni se osu (Mãe de Logun ede, mulher trivial como alguem que prepara o legume osu)
Ologunede o gb(e) èru kò s(e) ayo (Ologunede, aquele que tem medo não pode tornar-se uma pessoa importante)

Na página 418 há uma cantiga (cuja tradução que consta é bem rudimentar) proveniente de Ouidah listada entre as de Oxum, mas entre parênteses está escrito “para Logun Ede”, seguem os trechos que considerei interessantes:

Nigbo ti ko yeye mi (Onde que torna mostrar minha mãe)
Mo ko nigbo Ogun ode (Eu volto a mostrar onde Ogun ode)
Kabo ti ko yeye mi (Onde que encontrar mãe minha)
Akuko nlá a bi(i) di rodo (Galo grande ele com cauda desdobrada)

Se considerada uma correspondência entre as frases (as duas ultimas são referidas como refrão), então a frase 'Akuko nlá a bii di rodo' refere-se ao supracitado 'Ogun ode'.

Algumas pessoas afirmam que Logun possui ligação com Ogun, de fato são Orixás caçadores, mas além disso há um Orixá que possui forte ligação com Oxum cultuado na cidade de Oxogbo chamado Owari, ele é tido como o artesão que fabrica as jóias de cobre que Oxum usa, e a tradição afirma que os filhos são as verdadeiras jóias de Oxum. Se as jóias são os filhos, e o fabricante dos filhos-jóias é Owari, então ele pode ser considerado o pai de Logun Edé. No Brasil existe uma divindade adorada sob o nome de Ogun Wari. Como Ogun, tanto Owari quanto Erinlé são considerados artífices metalúrgicos. A relação entre Erinle e Oxum se dá também quando o curso do rio Erinle atravessa o de Oxum em Ilobu.

Deste modo a paternidade de Logun pode variar de acordo com a região em que Oxum seja cultuada, afinal: Loogun-ede? Osun ni! (Loogun-ede? Ele é Oxum!). Tamanha a ligação entre os dois, é com essa frase que um antigo sacerdote de Oxum em Oxogbo respondeu quando indagado sobre Logun!

E quanto à característica infantil de Logun, cito duas passagens de Oriki:

Abikehin yeye tii yo gbogbo omo omi lenu (Filho mais novo da mãezinha (Oxum) que se diverte com os outros filhos das águas)
Tima l(i) ehin yeye (r)e (Encarapitado nas costas de sua mãe)

A fama de ser muito belo também consta em Oriki:
Okansoso gudugu (Ele é muito só e muito belo)
Oda d(i) ohun (Ele é belo até na voz)
Ajangolo okunrin (Homem esbelto)
Ati bitibi ilebe (Ele usa roupas finas)
O dara d(e) eyin oju (Ele é belo até nos olhos)
Okunrin sembeluju (Homem muito belo)

Com Oxossi também compartilha alguns epítetos:
Logun: Oda bi odundun (Ele é fresco como a folha de odundun)
Oxossi: A bi awo lolo (Que possui a pele fresca)
Seus animais parecem ser o leopardo e o falcão/gavião:
Ekun o b(i) awo fini (Leopardo que tem o pelo muito belo)
Rere gbe adie ti on ti iye (O gavião pega o frango com suas penas)
Panpa bi asa asode bi ologbo (Rápido como um falcão, aquele que caça como um gato)

Por fim duas frases de seu /oriki que citam nomes de outras divindades (Orumilá e Xapanã):
Okansoso Orunmila a(wa) kan ma dahun (Somente em Orunmila nós tocamos, mas ele não responde)
O je oruko bi Soponna sos pe on Soponna e nia hun (Ele tem um nome como Soponna, é difícil alguém mau chamar-se Soponna)

Concluo este texto com um trecho de uma tese de doutorado da PUC-SP de autoria de Maria das Graças de Santana Rodrigué, entitulada 'Orí, na tradição dos Orixás - Um estudo nos rituais do Ile Ase Opo Afonja', que contém uma informação que só tomei conhecimento muito recentemente:

O templo de Ifá encontra-se, na cidade de Ilé Ifé na Nigéria e no ápice do Monte Ijetí está cravado o sacrário de Ifá, e ao lado na mesma colina está o assentamento do Orixá Logun Edé. Colina encalorada devido a sua constituição rochosa a base de mica, mineral do grupo filosicato e o clima da região ser equatoriano. Lá o orixá Logun Edé é reverenciado e conhecido como o escrivão de Ifá. Durante a visita que fizemos à esse templo, perguntamos ao Sacerdote de Oxalá que nos acompanhava: __ quem é mesmo o orixá escrivão de Ifá? Ele respondeu é Logun Edé. Esse fato ocorreu em agosto de 1989.

Assim espero que esse texto sirva pra pessoas que, como eu, não se contentaram com os textos comumente veiculados na internet e até mesmo em livros sobre o Orixá Logun Ede.

Texto e pesquisa: LAURA SVORAZAROVSKI
Créditos: Baba Luiz d'Ayra

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Malunguinho


No século XIX, parte das terras localizadas em Olinda, no estado de Pernambuco, eram improdutivas, fato que culminou na luta pelo desenvolvimento agrário. Um dos movimentos de maior representatividade foi o dos negros do Quilombo de Cacutá, localizado nas terras conhecidas atualmente, como Engenho Utinga, no município de Abreu e Lima. Entre os anos de 1814 a 1837, os revoltosos implementaram diversas ações contra o poder local constituído, que naquele momento estava fragilizado pelos conflitos internos pelo poder e soberania. Desenvolveram técnicas de guerrilha, conhecidas até hoje, como estrepes, um tipo de lança feita em madeira bem afiada, que ao ser enterrada em buracos escondidos na mata, continha os invasores dos quilombos.

De acordo com Mário de Andrade, em Música de Feitiçaria no Brasil, "Malunguinho é um negro africano feiticeiro malévolo. Só pratica o mal. Trabalha com a cabeça no chão à meia-noite com panos pretos. É capaz de tomar mais de uma garrafa de cauim duma vez e até duas. Serviço dele outro espírito não desmancha. É um espírito atrasado, convive em mundos inferiores, no geral, não é chamado. Manda enterrar sapos cururus na porta de quem a gente quer infelicitar". A visão do autor de Macunaíma é bastante negativa em relação ao cultivo da entidade nos dias de hoje, tida como benevolente pelos praticantes.

De acordo com o pesquisador Hildo Leal da Rosa, no culto da Jurema, Malunguinho é uma entidade de grande poder, que se manifesta de três formas bastante distintas: Exu, caboclo e mestre. 
  • O primeiro representa o mensageiro, fazendo o elo de ligação da linha da Jurema com as pessoas. 
  • O segundo é a figura do guia, o principal protetor dos iniciados no culto. 
  • O terceiro representa alguém que teve existência real na terra. A Jurema, segundo o pesquisador, é um culto religioso de origem indígena (existe no Brasil desde o século 16), mas que também carrega elementos afros (negros) e cristãos (brancos). 


“Malunguinho é uma entidade que fala pouco e não demora muito quando incorpora. Suas palavras são meio truncadas, como uma criança falando, e a língua mistura português com outro idioma”. Durante o culto, as mensagens trazidas pela entidade são repassadas a um médium. “Quando a pessoa está com um problema sério e precisa de uma proteção grande, uma das primeiras entidades chamadas para ajudar é Malunguinho”. 

Traduzido como um Exu muito forte, Malunguinho também é invocado nas cerimônias para levar embora os outros exus. Antes de começar os rituais,  semprem pedem proteção a Malunguinho. 

“Isso é uma história muito bonita. O povo pega um herói popular que existiu de verdade, guerreiro, líder dos negros e o coloca no olimpo das divindades”, acrescenta o historiador Marcus Carvalho. Várias cantigas usadas no culto da Jurema citam a figura de Malunguinho.

“Subir ao panteão das divindades é talvez a maior homenagem que um povo pode prestar aos seus heróis”, destaca Marcus Carvalho na publicação O Quilombo de Malunguinho, o rei das matas de Pernambuco (Liberdade por um fio/História dos quilombos no Brasil, editado pela Companhia das Letras). Para Marcus Carvalho, a unidade entre a divindade e o guerreiro da floresta do Catucá é evidenciada em uma cantiga que cita um antigo aparato militar usados pelos quilombolas, os estrepes.

Marcus Carvalho explica que estrepes eram paus pontudos fincados no chão, em armadilhas ou expostos, para impedir os ataques dos soldados aos quilombos. “Muitos soldados caíam nas armadilhas ao perseguir os negros. Vem daí a expressão ‘se estrepar’, observa. “O Malunguinho da Jurema, que tem o poder de tirar os estrepes do caminho, é, portanto, a recriação simbólica do próprio Malunguinho do Catucá: o verdadeiro rei das matas de Pernambuco”.